Interoperabilidade entre PACS, RIS e prontuário eletrônico: como integrar?

|24 nov, 2025|Categorias: Gestão Médica|9,8 min de leitura|
funcionarias de uma clínica conversando sobre os sistemas

A integração entre sistemas de imagem (PACS), sistemas de informação em radiologia (RIS) e prontuário eletrônico do paciente é um dos desafios centrais da saúde digital. O objetivo é simples de enunciar e complexo de executar: garantir que pedidos de exame, imagens, laudos e metadados circulem com precisão, no tempo certo e com segurança. Quando bem desenhada, a interoperabilidade reduz retrabalho, evita erros de identificação e encurta o ciclo entre solicitação, aquisição, interpretação e disponibilização do resultado.

Para viabilizar esse fluxo, é indispensável combinar padrões consolidados de mensagens e imagens com perfis de integração que descrevem papéis, transações e responsabilidades. DICOM organiza a camada de imagem; HL7 e FHIR estruturam dados clínicos e eventos; IHE provê perfis que amarram tudo em processos testáveis. Assim, o projeto sai do nível de “pontos a pontos” e passa a operar sobre contratos claros e auditáveis.

Este artigo descreve os blocos técnicos e operacionais que compõem uma integração robusta. A proposta é evoluir do conceito para a prática: do pedido no prontuário ao laudo assinado e às imagens disponíveis de forma padronizada para toda a rede assistencial, com governança de segurança e conformidade legal.

 

Padrões essenciais: DICOM, HL7 v2 e FHIR

DICOM é o padrão de referência para imagens médicas; define formatos de arquivo, serviços de rede e objetos estruturados, como Relatório Estruturado DICOM para achados e medições. Em radiologia, a base envolve serviços de armazenamento, consulta e recuperação, além de mecanismos como Modality Worklist e MPPS para sincronizar o ciclo do exame. A consistência entre identificadores, horários e atributos de estudo depende do uso disciplinado desses serviços.

HL7 v2 cobre eventos clínicos operacionais. Em radiologia, mensagens ADT informam admissão e demografia; ORM ou OMI transmitem pedidos e agendamentos; ORU carrega resultados textuais. O RIS centraliza esse intercâmbio com o PACS e com o prontuário, preservando a rastreabilidade das mudanças. A padronização de valores em campos como procedimento requisitado e razão do exame melhora a qualidade do dado ao longo do fluxo.

FHIR oferece recursos modernos para APIs. ServiceRequest representa o pedido; ImagingStudy referencia séries e instâncias; DiagnosticReport agrega o laudo e pode vincular observações estruturadas. Em integrações atuais, FHIR costuma orquestrar o ciclo clínico e DICOMweb entrega as imagens. Essa separação de responsabilidades facilita o desacoplamento e evolução tecnológica sem que se percam garantias de interoperabilidade.

 

Arquitetura de ponta a ponta: do pedido à disponibilidade

O fluxo começa no prontuário com a emissão de um pedido. Esse pedido precisa de identificação inequívoca do paciente e do encontro; a mensagem segue ao RIS, que agenda, valida elegibilidade e envia Modality Worklist à modalidade. Com isso, dados demográficos e do exame chegam ao equipamento de forma automática, reduzindo digitação e erros de associação.

Após a aquisição, a modalidade publica o progresso via MPPS; as imagens são enviadas ao PACS para armazenamento durável e indexação. O radiologista interpreta no viewer do PACS ou em solução dedicada e assina o laudo, que retorna ao prontuário como resultado estruturado. O link de referência a imagens deve ser estável, preferencialmente via DICOMweb com URL autenticada e tempo de expiração controlado.

Por fim, a instituição pode optar por compartilhamento intra ou interorganizacional. Para redes amplas, perfis de repositório e registro de documentos evitam cópias desnecessárias e mantêm o histórico acessível. A governança decide retenção, consentimento e escopos de acesso, sempre com trilha de auditoria ativa.

 

DICOMweb e FHIR na prática: APIs que escalam

DICOMweb fornece três serviços RESTful principais. QIDO-RS realiza consultas a estudos, séries e instâncias por critérios como paciente, data e modal; WADO-RS recupera objetos, inclusive quadros específicos de imagens; STOW-RS armazena novas instâncias de forma HTTP. Essa abordagem viabiliza viewers zero-footprint e integrações leves com o prontuário, sem dependência de associações DICOM tradicionais em todas as camadas.

No FHIR, a orquestração ocorre com recursos relacionados. O prontuário cria um ServiceRequest com códigos de procedimento e contexto clínico; o RIS pode expor um endpoint para aceitar, atualizar status e retornar slots de agendamento. Ao concluir o exame, o PACS ou um serviço intermediário publica um ImagingStudy e vincula ao ServiceRequest; o laudo chega como DiagnosticReport, possivelmente com Observations estruturadas quando pertinente.

Mapeamentos consistentes entre IDs locais e identificadores FHIR são críticos. É prudente manter uma camada de mediação que resolva chaves, normalize códigos e verifique consistência temporal. Esse mediador reduz o acoplamento e permite substituir componentes sem reescrever integrações centrais.

 

Perfis IHE: do conceito ao teste de conformidade

Os perfis IHE descrevem processos completos e transações interoperáveis. Scheduled Workflow define como ADT, pedidos, worklist e MPPS se articulam para garantir rastreabilidade do ciclo do exame. Patient Information Reconciliation trata correções de identificação após a aquisição, mitigando impactos de pacientes desconhecidos ou trocados.

Para compartilhamento, XDS-I.b amplia o modelo de registro e repositório de documentos clínicos para imagens, com metadados padronizados e recuperação consistente entre domínios. Quando a estratégia privilegia APIs modernas, MHD publica documentos e metadados via FHIR; em cenários de imagem, o uso combinado com referências DICOMweb mantém desempenho e simplicidade de consumo.

Outros perfis complementam a segurança e a consistência. ATNA estabelece trilhas de auditoria e políticas de segurança de transporte; XUA ou IUA lidam com identidade e atributos de usuário para controle de acesso federado. IOCM trata alinhamento de alterações, como marcas de rejeição e substituição de imagens, evitando divergências entre PACS e modalidades.

 

Terminologias clínicas e metadados: semântica que evita ambiguidade

A interoperabilidade técnica depende de uma camada semântica clara. Procedimentos devem usar vocabulários padronizados; LOINC cobre códigos de exames e tipos de imagem; SNOMED CT representa achados e anormalidades. Essa codificação viabiliza analytics reprodutível, pesquisa e troca entre instituições sem perda de significado.

Metadados DICOM como Study Description, Body Part Examined e Procedure Code devem ser preenchidos de forma consistente pelo RIS e pela modalidade. Em FHIR, extensões controladas podem carregar atributos específicos, desde que documentadas e versionadas. A regra é preferir campos nativos e códigos públicos antes de criar extensões locais.

Validações automáticas no ponto de entrada evitam propagação de erros. Listas de valores, verificações de tipo e coerência entre horário do encontro e data do exame são controles simples que elevam a qualidade e a confiança do ecossistema.

 

Segurança, privacidade e conformidade

Imagens médicas são dados sensíveis e frequentemente pesados. Transporte deve usar TLS; autenticação e autorização precisam ser centralizadas e baseadas em perfis de acesso. Tokens com escopo e tempo de vida definidos reduzem exposição. Logs imutáveis, assinaturas do laudo e carimbo de tempo completam a trilha de responsabilidade.

O princípio de mínimo privilégio deve guiar viewers e serviços. O prontuário não precisa listar instâncias se apenas exibe um diagnóstico; pode consumir miniaturas ou endpoints protegidos que renderizem a visão necessária. Para ensino e pesquisa, rotinas de desidentificação DICOM e segregação de ambientes previnem vazamentos.

Conformidade legal exige registro de bases e finalidades de tratamento, além de contratos claros com operadores. Políticas de retenção, descarte seguro e resposta a incidentes precisam estar documentadas e testadas. Em auditorias, a demonstração de aderência a perfis IHE e a controles de segurança acelera a avaliação e reduz risco.

 

Estratégia de implantação: passos testáveis e métricas

Planeje por ondas. Comece por uma linha de cuidado, valide Scheduled Workflow e MPPS, depois avance para DICOMweb e exposição de ImagingStudy no prontuário. Em seguida, inclua laudo estruturado e vinculação a relatórios clínicos. Só então amplie a escopo para compartilhamento interinstitucional.

Automatize testes de regressão. Suites que consultam QIDO, recuperam WADO e verificam metadados críticos capturam quebras cedo. Em FHIR, testes de criação e atualização de ServiceRequest, ImagingStudy e DiagnosticReport asseguram que contratos permaneçam estáveis durante evoluções de versão.

Defina métricas de valor. Tempo médio entre pedido e disponibilização do laudo; taxa de exames sem worklist; divergência de IDs; erros de associação; latência média de abertura do viewer. Esses indicadores orientam correções e comprovam ganhos assistenciais e operacionais.

 

Casos de uso chave no prontuário eletrônico

Visualização de imagem à beira do leito requer inicialização rápida e navegação simples. Links de estudo via DICOMweb com autorização por sessão resolvem o acesso sem replicar grandes volumes. Quando necessário, o prontuário chama um viewer dedicado por meio do perfil IID, mantendo contexto de paciente e estudo.

Laudos estruturados elevam a utilidade clínica. Em cenários apropriados, medições podem ir como DICOM SR e serem refletidas em Observations FHIR; o relatório final aparece como DiagnosticReport com anexos em PDF para arquivamento legal. A dupla representação concilia consumo humano e computacional.

Integrações com fluxos de decisão clínica usam metadados e códigos padronizados. Resultados críticos disparam alertas; achados específicos alimentam registries e programas de rastreamento. A padronização desde a origem evita mapeamentos ad hoc em cada nova regra.

 

Conclusão

Integrar PACS, RIS e prontuário eletrônico exige padrões sólidos, perfis de integração e disciplina operacional. DICOM e DICOMweb resolvem imagem; HL7 v2 e FHIR organizam eventos e resultados; IHE transforma tudo em processos verificáveis. Com segurança aplicada desde o desenho e métricas de valor, a interoperabilidade deixa de ser um projeto de TI e se torna um ativo clínico que reduz atrasos e erros.

O caminho recomendado combina passos curtos, testes automatizados e governança de dados. Ao adotar terminologias clínicas e contratos de API estáveis, a instituição cria uma base reaproveitável para novas linhas de cuidado. O resultado é previsibilidade: do pedido à decisão, com dados íntegros e acessíveis.

Em síntese, a integração eficaz é uma prática de engenharia clínica e de processos; tecnologia é o meio. O alvo permanece o mesmo: entregar imagem e laudo certos, para o paciente certo, no tempo adequado e com segurança.

 

Referências

National Electrical Manufacturers Association. DICOM Standard. Disponível em: dicomstandard.org.

HL7 International. HL7 Version 2 Product Suite. Disponível em: hl7.org.

HL7 International. FHIR R4. Recursos ServiceRequest, ImagingStudy, DiagnosticReport. Disponível em: hl7.org.

DICOM Standards Committee. DICOMweb Services: QIDO-RS, WADO-RS, STOW-RS. Disponível em: dicomstandard.org.

Integrating the Healthcare Enterprise. Radiology Technical Framework, Scheduled Workflow. Disponível em: ihe.net.

Integrating the Healthcare Enterprise. ITI Technical Framework, XDS e XDS-I.b. Disponível em: ihe.net.

Integrating the Healthcare Enterprise. Mobile Access to Health Documents e Internet User Authorization. Disponível em: ihe.net.

LOINC. Radiology terms and codes. Disponível em: loinc.org.

SNOMED International. SNOMED CT. Disponível em: snomed.org.

Integrating the Healthcare Enterprise. Audit Trail and Node Authentication; Patient Information Reconciliation; Instance Availability Notification; Imaging Object Change Management. Disponível em: ihe.net.